A lógica da vida, introdução: o programa

Na primeira parte da introdução, que se chama “O programa”, Jacob começa nos lembrando da noção bastante evidente da “formação do semelhante pelo semelhante” (p. 9), dessa forma que permanece ao longo das gerações e que, aliada à experiência, permitiu que nossos ancestrais transformassem plantas e animais a nosso favor. Apesar dessa prática de manipulação milenar e do conhecimento aí desenvolvido, muitas explicações conflitantes circularam – e por que não dizer que ainda circulam – sobre o tema. Ele contextualiza a noção de programa, tão cara ao nosso entendimento de hereditariedade atualmente, que é descrita “em termos de informação, mensagens, código. […]. O que se transmite, de geração em geração, são as ‘instruções’ […]. O organismo torna-se assim a realização de um programa prescrito pela hereditariedade. A intenção de uma Psyché foi substituída pela tradução de uma mensagem.” (p. 10). E acredita que, com isso, algumas discussões conceituais desapareceram, como as que opunham “finalidade e mecanismo, necessidade e contingência, estabilidade e variação” (p. 10).

Tudo isso será detalhadamente explicado ao longo dos capítulos. Mas é interessante ver como ele prepara o terreno nessa introdução, mostrando, por exemplo, a diferença entre memória genética (hereditariedade), que surge junto com o ser vivo, e memória nervosa (cérebro), que se relaciona ao pensamento e à linguagem. Esse mecanismo de memória está no cerne de muita confusão sobre o assunto da herança de caracteres adquiridos, sobretudo em relação aos mecanismos envolvidos na conservação e transmissão da experiência passada. Não se trata de uma relação de necessidade, de causa e efeito. Diz ele: “Para cada indivíduo, o programa é o resultado de uma sucessão de acontecimentos, todos contingentes. […] O programa não recebe lições da experiência”(p. 11), ou seja, não há intervenção externa no rígido mecanismo da hereditariedade (memória genética), ao contrário do mecanismo da memória nervosa (pensamento, linguagem, cérebro), que é flexível.

Jacob relembra que a noção de projeto, que implica regulação externa e relação intrínseca entre origem e finalidade dos seres vivos e do universo, fluiu tranquilamente até o século XVII, quando se constituiu a física moderna e o seu mecanicismo. A partir daí se instala a contradição entre mecanismo e finalidade no pensamento biológico, que só se exaure com a noção de programa da biologia moderna. No entanto, Jacob faz questão de apontar que no auge dessa contradição, em Claude Bernard (1813-1878) por exemplo, já se encontram argumentos para isso, associando os fenômenos vitais às manifestações físico-químicas por meio de uma lei ou um “guia invisível” (p. 12).

A questão da estabilidade e da variação também é aqui introduzida, aproximada dos conceitos de repetição e diferença. Se o sistema não é capaz de se reproduzir, “[c]ada nascimento constitui um acontecimento único, sem futuro. Cada vez é um recomeço” (p. 12-13). Pode-se até discutir se isso é vida. Mas se há reprodução, não há dúvida sobre isso: “esta organização se perpetua pela repetição de acontecimentos idênticos. […] [C]ada geração desempenhou rigorosamente seu papel, que consistia em reproduzir exatamente o programa para a geração seguinte” (p. 13). Só que isso não basta para entender o mundo vivo, que produz diferenças constantemente. Como aprendemos com Darwin, se forem favoráveis à reprodução, as variações, que “acontecem às cegas” (p. 13), são selecionadas e herdadas pela prole. A luta pela vida é, portanto, uma luta pela descendência, que implica sobreviver à concorrência com sua própria espécie e outras pelos recursos naturais do seu meio ambiente e, claro, reproduzir-se “sempre mais e melhor” (p. 14). A seleção natural é exatamente esse processo regulador que se dirige “para uma ordem crescente” (p. 13), em oposição ao mundo inanimado, que tende à desordem. Ou seja, justamente porque precisa se reproduzir, a variação é extremamente bem-vinda.

Jacob faz uma reflexão sobre as duas atitudes que identifica da biologia: uma “integrista ou evolucionista” e outra “tomista ou reducionista” (p. 14-15). Na primeira, há um interesse por causas remotas, na ordem entre os organismos, e um entendimento dos seres vivos como parte do sistema Terra. Na segunda, priorizam-se as causas imediatas, bem como a ordem entre as estruturas e no interior de cada organismo. Entre ambas “há não somente uma diferença de método e de objetivo, mas também de linguagem, de esquemas conceituais e, por conseguinte, de explicações causais de que é passível o mundo vivo. […] Muitas controvérsias e mal-entendidos, principalmente sobre a finalidade dos seres vivos, devem-se à confusão entre estas duas atitudes da biologia.” (p. 15)

Mas essas “duas ordens articulam-se ao nível da hereditariedade que constitui, por assim dizer, a ordem da ordem biológica. […] Na seleção natural, um programa genético que impõe o automatismo de tais reações certamente vencerá aquele que não as possui. […] A reprodução em todos os casos funciona como operador principal do mundo vivo.” (p. 15-16) Isso parece trazer de volta a noção de telos, de uma finalidade, bem como um novo mecanicismo. No entanto, segundo Jacob, há diferenças cruciais entre o programa genético e a fonte dessa analogia, o programa de computador. Esse último pode ser alterado “em função dos resultados obtidos” (p. 16), suas instruções não se relacionam com suas peças e ele não se reproduz. “Reproduzir um ser vivo, ao contrário, não é recopiar o pai tal como ele é no momento da procriação. É criar um novo ser. […] Além disso, nem tudo está fixado com rigidez pelo programa genético.” (p. 17)

Na segunda parte da introdução, Jacob recupera uma discussão importante sobre a historiografia das ciências, mostrando duas diferentes concepções e respectivas interpretações, e ilustrando sua adesão a uma delas com exemplos comparativos. Mais precisamente, ele se distingue de uma concepção positivista de história, que se baseia na ideia de progresso, de um caminho privilegiado e de uma “teleologia da razão” (p. 18), e se aproxima de uma história do conceito, dos domínios e das relações. Com isso, cabe à história das ciências demarcar as etapas do saber, precisar as transformações e revelar as condições de entrada de objetos e interpretações no campo do possível, que, por sua vez, não é linear nem se prende a valores racionais imutáveis.

As diferentes interpretações historiográficas da geração espontânea (GA) servem como exemplo dessas duas concepções. Na leitura positivista, a GA “começa a ser abalada com as experiências de Francisco Redi, perde mais terreno com as de Spallanzani, desaparece definitivamente com as de Pasteur. Mas não se compreende então por que é preciso esperar que Pasteur repita, mesmo aperfeiçoando, os trabalhos de Spallanzani para tirar as mesmas conclusões.” (p. 18). Na leitura de Jacob, filiado a uma nova tradição historiográfica: “A eliminação da geração espontânea não é mais, então, uma operação quase linear que conduz de Redi a Pasteur passando por Spallanzani” (p. 19). O mesmo se aplica ao advento da teoria da evolução. Não se trata de quem é predecessor de quem, mas de novos objetos e conceitos que derivam de novas maneiras de olhar e formular questões (p. 20-21). Nesse sentido, por exemplo, vale a pena investigar a contribuição de fixistas, como Cuvier, para a teoria da evolução. É por aí também que se pode entender por que “a obra de Mendel permaneceu ignorada durante mais de trinta anos, foi porque nem os biólogos de profissão, nem os criadores, nem os horticultores tinham condições de adotar seu ponto de vista” (p. 21)

Falando em teoria da evolução, Jacob destaca quatro características: 1) reunião de “uma massa de observações” de domínios diferentes que estariam isoladas; 2) interrelação das “disciplinas que se interessam pelos seres vivos”; 3) instauração de “uma ordem na extraordinária variedade dos organismos” e ligação estreita com o “resto da Terra”; e 4) “explicação causal do mundo vivo e de sua heterogeneidade” (p. 20). E a resume em duas proposições: origem comum e derivação por seleção natural. Ele lembra também do principal inconveniente: sua historicidade não verificável, mas sujeita à experiência.

Não se trata, pois, de uma questão instrumental ou técnica. Isso não é suficiente para produzir novos objetos e conceitos. Não basta ver o objeto, o pensamento precisa relacioná-lo ao mundo vivo: “É preciso também que uma teoria esteja pronta para acolhê-lo. Na relação entre a teoria e a experiência, é sempre a primeira que inicia o diálogo. É ela que determina a forma da questão, portanto os limites da resposta.” (p. 22)

Na terceira e última parte da introdução, vemos uma síntese em quatro momentos da história da biologia que o livro vai nos contar (p. 23-24): 1) superfícies visíveis, século XVII (capítulo 1); 2) órgãos, funções e células, século XVIII (capítulos 2 e 3); 3) cromossomos e genes, século XX (capítulo 4); e 4) DNA (capítulo 5). Jacob se propõe a nos mostrar como foi a passagem da noção de geração – “criação sempre renovada e que exige intervenção de uma força externa” (p. 23) – para a de reprodução – “propriedade interna de todo sistema vivo” (p. 24) -, e como isso refletiu uma profunda “transformação na própria natureza do saber […], uma nova maneira de considerar os objetos.” (p. 24).

Para finalizar, vale lembrar as palavras de Foucault sobre esse livro de Jacob: “é a mais notável história da biologia jamais escrita” (FOUCAULT, 2000, p. 259). Em seu texto “Crescer e multiplicar”, esse elogio ao seu conterrâneo é justificado porque Foucault reconhece que os quatro capítulos do livro – organização, tempo, gene e molécula – refletem os quatro abalos na biologia que ocorreram nos últimos 150 anos, e que foram responsáveis por, gradativamente, desmistificar o nosso sonho imemorial de que a reprodução fosse uma compensação para a morte, um prolongamento. Nesse fecundo desencantamento da vida, que se transforma num jogo calculável de acaso e reprodução, a gente não comanda nada, e o ser vivo, antes de indivíduo, é um sistema hereditário. Assim como Jacob no fim da introdução se refere a essa história como uma mudança na natureza do saber, Foucault se pergunta sobre “tudo o que foi preciso para a ciência saber e tudo o que este saber custa ao pensamento”. (p. 259)

Referências:

FOUCAULT, Michel. Crescer e multiplicar. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. RJ: Forense Universitária, 2000, p. 255-259 (Coleção Ditos e Escritos II).

JACOB, François. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Tradução de Ângela Loureiro de Souza. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1983.

Uma resposta

  1. Excelente!

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