Ciência e Arte em Jung

No capítulo “Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética”, que é uma palestra proferida em 1922, Jung entra diretamente na questão-chave do seu livro, O espírito na arte e na ciência, que tem sido objeto dos nossos Seminários Ciência & Arte às quartas. Ele começa com uma crítica ao reducionismo psicológico, que se desdobra numa crítica à interpretação psicanalítica das obras de arte, para nos brindar com uma aula sobre alguns conceitos importantes da sua psicologia analítica, como complexo autônomo, inconsciente coletivo e arquétipo, que podem ser mais produtivos para pensar a arte. Mas vamos por partes.

Logo de cara, Jung estabelece que “a arte não é ciência e ciência tampouco é arte” (p. 66). O que parece ser um elogio à demarcação ou à superioridade da ciência se revela como uma crítica ao reducionismo e à psicanálise. Ele afirma o caráter psicológico da arte, mas diz que só o processo de criação pode ser estudado pela psicologia, ou seja, os fenômenos simbólicos e emocionais: “a arte em si não pode ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas” (p. 65).

Caso contrário, se a essência da arte estivesse ao alcance da psicologia, se pudesse ser reduzida à psicologia, ela perderia a sua especificidade. E é assim que ele considera o método de Freud aplicado à análise das obras de arte: redutivo e corrosivo: “Quando uma obra de arte é interpretada da mesma forma como uma neurose, de duas uma: ou a obra de arte é uma neurose ou a neurose é uma obra de arte” (p. 67).

Para Jung, isso nada mais é do que preconceito profissional, um leigo não faria isso. Ele lembra que, a partir de Freud, o historiador literário pôde dar “tratamento científico” à obra de arte, da qual “pode resultar uma interessante visão geral de como a criação artística está entrelaçada com a vida pessoal do artista”. O problema é a indiscrição, a falta de tato e o escândalo, “uma catástrofe do bom gosto sob o manto da ciência”, derivados da “falta de surpresa diante do ‘humano, demasiado humano’ que caracteriza a psicologia médica profissional” (p. 68). Ou seja, há uma perda da especificidade ao transformar o poeta em caso clínico.

Ele ainda vai mais longe na crítica, dizendo que esse tipo de explicação é superficial e monótono, além de inútil:

“Como esta espécie de análise não trata da obra de arte em si, mas visa enterrar-se, qual topeira, e o mais rápido possível, nos recônditos e profundidades, atinge sempre a mesma terra universal que carrega toda a humanidade, […] e talvez tenha o mesmo valor científico que a autópsia feita no cérebro de Nietzsche”. (p. 69).

Jung apresenta brevemente o método de Freud, critica o seu limitado entendimento de símbolo, bem como o seu dogmatismo, que identificou técnica e doutrina. Ele aceita a técnica em alguns casos médicos, mas repudia a doutrina pois a considera arbitrária (p. 70-71). E ainda desabafa: “A obra de arte não é uma doença e […] é supérfluo investigar o condicionamento prévio a que estão sujeitas todas as pessoas em geral. É preciso perguntar pelo sentido da obra.” (p. 71-72)

Na sequência, Jung começa a dar o seu bote, argumentando contra a noção de causalidade pessoal implicada na concepção freudiana de arte, que, afinal, “não é um ser humano, mas algo suprapessoal” (p. 72). Ou seja, em vez de tratar do “poeta como pessoa”, Jung se propõe a tratar do processo criador. Ademais:

“uma psicologia puramente causal nada mais pode do que reduzir cada indivíduo humano a um membro da espécie homo sapiens, pois, para ela, só existe produto e derivado. Uma obra de arte, porém, não é apenas um produto ou derivado, mas uma reorganização criativa […], aproveitando livremente todas as condições prévias. ” (p. 72)

A partir desse ponto, e inspirado por Schiller, Jung apresenta as premissas do seu argumento, que se encontram numa diferenciação entre a obra de arte com propósito definido e a obra de arte como imposição ao autor. No primeiro caso trata-se de escolhas conscientes, “o poeta é, por assim dizer, idêntico ao processo criativo” (p. 73). Psicologicamente, é possível identificá-lo com o introvertido, que se caracteriza por um sujeito maior que o objeto, que se impõe ao objeto. No segundo caso, ao contrário, há uma submissão à obra, uma não identificação com a realização criadora: “a obra traz em si a sua própria forma; e tudo aquilo que ele gostaria de acrescentar será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar será a ele imposto” (p. 73). Psicologicamente, é possível identificá-lo com o extrovertido, que se caracteriza por um sujeito menor que o objeto, que se submete ao objeto.

Sobre a aparência de total liberdade do primeiro caso, Jung diz que se trata de uma ilusão do consciente do poeta: “ele acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível. […] O consciente não só pode ser influenciado pelo inconsciente, mas até dirigido por ele.” (p. 75). Trata-se do complexo autônomo (CA), esse impulso criativo forte, caprichoso e arbitrário, “uma força da natureza que se impõe” (p. 75). Algumas provas diretas ou indiretas disso seriam, por exemplo, situações em que se diz mais do que se percebe ou em que se manifesta o “imperativo” em casos de interrupção:

“O poeta que se identifica com o processo criativo é aquele que diz sim, logo que ameaçado por um ‘imperativo’ inconsciente. Mas aquele que se defronta com a criatividade como força quase estranha não pode, por algum motivo, dizer sim e é pego na surpresa pelo ‘imperativo'”. (p. 76)

É aí que Jung se pergunta: a diversidade de sua origem (consciente ou inconsciente) é palpável numa obra? Ou seja, será que é possível mesmo identificar um caráter intencional, de que uma obra não diz nada além do que foi posto pelo autor; ou, por outro lado, um caráter suprapessoal, de estranheza de forma/imagem, de compreensão intuitiva ou linguagem simbólica?

Para Jung, é preciso examinar “a relação pessoal do poeta com sua arte”, não basta saber se é introvertido ou extrovertido, “já que os dois tipos têm possibilidade de produzir, ora em atitude introvertida, ora em atitude extrovertida.” (p. 77). Além disso, a complexidade aumenta: no primeiro caso, se fosse ilusão subjetiva, a obra também seria simbólica, superando o espírito da época, mas o leitor ainda estaria preso a ela (p. 77):

“o velho poeta nos diz algo de novo [que] já existia antes em sua obra mas era um símbolo escondido que só nos foi permitido ler após uma renovação do espírito da época. Houve necessidade de outros e novos olhos, pois os antigos só poderiam ver o que estavam acostumados a ver. […] O símbolo é sempre um desafio à nossa reflexão e compreensão” (p. 78)

Por isso a dificuldade do puro deleite estético com obras simbólicas, ao contrário de obras não simbólicas.

Sobre o mistério da criatividade, Jung reafirma as limitações da ciência: “Como toda ciência, também a psicologia tem apenas uma modesta contribuição para o melhor e mais profundo conhecimento dos fenômenos da vida, mas está tão longe do saber absoluto quanto suas ciências irmãs.” (p. 78). No entanto, ao tratar da questão do sentido, garante que está de acordo com os requisitos da ciência:

“A pergunta sobre o sentido nada tem a ver com a arte. Se me colocar dentro da arte, tenho que me submeter à verdade dessa afirmação. Quando, porém, falamos da relação da psicologia com a obra de arte, já estamos fora da arte e nada mais nos resta senão especular e interpretar […]. Neste caso, não só podemos, mas até devemos falar de sentido. E assim, o que antes era mero fenômeno transforma-se em algo que, juntamente com outros fenômenos, terá sentido […]. Desta forma, ficam garantidos os requisitos da ciência.” (p. 78-79)

E é justamente o que ele faz a partir daqui com o conceito de complexo autônomo (CA), afastando-se de metáforas e usando “a terminologia mais exata da ciência” (p. 79):

“A fúria divina do artista se relaciona, perigosamente e de modo real, com o estado patológico, sem contudo identificar-se com ele. A analogia está na existência de um complexo autônomo. […] Cada atitude típica de certa forma diferenciada tem a tendência de transformar-se num complexo autônomo. […] Portanto, o complexo autônomo nada tem de doentio em si, apenas sua manifestação frequente e incômoda evidencia sofrimento e doença.” (p. 80)

Sobre o surgimento do CA, diz Jung que ele se desenvolve “usando a energia retirada do comando consciente da personalidade” (p. 80) e, sobre o seu caráter criativo, ele diz que se a obra de arte é o que aparenta, nossa parcialidade não permite análise; mas que se, ao contrário, a obra de arte é simbólica, ela pode ser analisada a partir da seguinte questão: “a que imagem primordial do inconsciente coletivo pode ser reduzida a imagem desenvolvida na obra de arte?” (p. 81)

O inconsciente coletivo (IC) é o “patrimônio comum da humanidade” (p. 81), diferentemente do inconsciente pessoal (IP). Para Jung, a arte do IC é composta de símbolos, e a do IP, de sintomas. Para esse último tipo de arte, é possível usar o método de Freud.

Numa camada abaixo do IP, que pode ser levado ao consciente, o IC “não tem, sob condições normais, capacidade de consciência, não podendo ser levado, através de técnica analítica, à rememoração, pois ele não é reprimido nem esquecido. A rigor, o inconsciente coletivo nem existe, pois nada mais é do que uma possibilidade” (p. 81), e isso se aplica também às ideias inatas. Só a posteriori, na experiência, “após o término da obra de arte, conseguiremos reconstruir o projeto primitivo da imagem primordial” (p. 82), do arquétipo, dessa figura mitológica que reaparece, “resíduos psíquicos de inúmeras vivências do mesmo tipo” (p. 82).

E agora uma passagem que lembra Darwin, trazendo uma reflexão importante sobre a relação entre indivíduo e espécie:

“A luta pela adaptação é uma coisa penosa, pois temos que nos confrontar constantemente com condições individuais, quer dizer, atípicas. […] Quando alcançamos uma situação típica, […] não somos mais indivíduos, mas uma espécie; pois a voz de toda a humanidade ressoa em nós. […] Os ideais mais atuantes são sempre variações mais ou menos transparentes de um arquétipo, […] a assim chamada participation mystique do homem primitivo com a terra em que ele vive e que só abriga os espíritos de seus ancestrais. O estranho traz infortúnio.” (p. 83)

A referência ao arquétipo é perturbadora, fala como mil vozes, “eleva o destino pessoal ao destino da humanidade” (p. 83).

Para finalizar a palestra, Jung afirma a ação da arte como “ativação inconsciente do arquétipo e […] elaboração e formalização na obra acabada” (p. 83) e o seu significado social de autorregulação espiritual na vida das épocas/nações:

“Assim como os indivíduos isoladamente, também os povos e as épocas têm suas atitudes ou tendências espirituais características. […] Onde há tendência há exclusão. […] A relativa inadaptabilidade do artista significa para ele uma vantagem real, permite-lhe permanecer afastado da estrada principal, seguir seus próprios anseios e encontrar aquilo de que os outros, sem o saber, sentiam falta.” (p. 84)

Referência bibliográfica:

JUNG, Carl Gustav. Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética. In: O espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros. Petrópolis/Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011, p. 65-84.

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